A crescente urgência global em mitigar as mudanças climáticas tem impulsionado a adoção de mecanismos inovadores, nos quais os mercados de carbono surgem como ferramentas cruciais para alcançar metas de redução de emissões de gases de efeito estufa. Nesse contexto, o Brasil estabeleceu o recém Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE) por meio da Lei nº 15.042, de 11 de dezembro de 2024. Mas o que podemos esperar desse nascente mercado de carbono tupiniquim, tendo como referência as experiências de instrumentos internacionais mais consolidados como o europeu?
A criação do SBCE é motivada pela necessidade de alinhar o Brasil com suas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) no Acordo de Paris, de incentivar a inovação e a adoção de tecnologias de baixo carbono. A Lei 15.042/2024 criou o sistema de comércio de emissões de gases de efeito estufa no Brasil, estabelecendo as bases para um mercado de carbono regulado.
O SBCE começa a transição de uma negociação voluntária de créditos de carbono para um sistema regulado, cujos objetivos primários do SBCE incluem a limitação e a redução das emissões de gases de efeito estufa dentro do território nacional, permitindo a negociação de ativos financeiros que representam reduções ou remoções de emissões.
O escopo inicial do SBCE abrange atividades, fontes e instalações industriais localizadas no Brasil que emitem ou têm o potencial de emitir mais de 10.000 toneladas de dióxido de carbono equivalente (tCO2e) por ano. Instalações que emitem acima de 25.000 tCO2e/ano terão obrigações de monitoramento e relato, e eventualmente de cumprimento de metas de emissão. É importante notar que o setor primário da produção agropecuária está excluído da participação obrigatória nesta fase inicial, embora possa participar voluntariamente através de projetos geradores de créditos. As emissões indiretas, como as da produção de insumos agrícolas, também estão fora do alcance regulatório direto do SBCE por enquanto.
Dois ativos principais foram definidos:
A lei também aborda a titularidade dos créditos de carbono gerados, baseando-se no tipo de terra e no detentor dos direitos (União, Estados, proprietários privados, comunidades indígenas, etc.), e permite que créditos gerados inicialmente para o mercado voluntário possam, cumpridos os requisitos, ser convertidos em CRVEs.
Foi estabelecido um regime tributário específico aplicável aos ativos negociados tanto dentro quanto fora do SBCE. Embora as alíquotas específicas não tenham sido explicitamente definidas, a nova norma estipula que os ganhos com a alienação de créditos de carbono e outros ativos definidos no âmbito do SBCE estarão sujeitos à tributação pelo Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e pela Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), seguindo as regras aplicáveis às transações em bolsas de valores, de mercadorias e de futuros e em mercados de balcão organizado e ganhos de capital, e de acordo com o regime tributário específico da pessoa jurídica envolvida (lucro presumido, real ou arbitrado). As receitas estarão isentas da incidência da contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins).
Já as despesas incorridas diretamente para a redução ou remoção de emissões de GEE que estejam demonstravelmente vinculadas à geração de créditos de carbono e ativos do SBCE poderão ser deduzidas da base de cálculo do IRPJ e da CSLL para as pessoas jurídicas tributadas pelo regime do Lucro Real, bem como do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). Essas despesas dedutíveis abrangem os gastos administrativos e financeiros necessários para a emissão, o registro, a negociação, a certificação ou as atividades do escriturador relacionadas a esses créditos.
Para contextualizar o SBCE e antecipar seus possíveis desafios e oportunidades, é instrutivo analisar a experiência do Sistema Europeu de Comércio de Emissões (EU ETS), o primeiro e maior mercado de carbono do mundo, estabelecido em 2005.
O sistema opera sob o princípio de “cap and trade” (limite e comércio), tal como o SBCE é proposto, onde um limite (cap) é estabelecido sobre a quantidade total de gases de efeito estufa que podem ser emitidos pelas entidades cobertas. Esse limite é progressivamente reduzido a cada ano para garantir uma diminuição geral nas emissões. As empresas são obrigadas a deter uma Licença de Emissão da União Europeia (EUA) para cada tonelada de CO2 que emitirem dentro de um ano civil.
Atualmente em sua quarta fase (2021-2030), o EU ETS abrange uma vasta gama de emissões de gases de efeito estufa de instalações e operadores nos seguintes setores em toda a União Europeia: geração de eletricidade e calor, refinarias de petróleo, siderúrgicas e produção de ferro, alumínio, cimento, cal, vidro, cerâmica, celulose, papel e produtos químicos a granel, aviação e transporte marítimo. O sistema é implementado em todos os Estados-Membros da UE, bem como na Islândia, Liechtenstein, Noruega e Irlanda do Norte.
A trajetória do EU ETS oferece lições valiosas. Suas fases iniciais (Fase 1: 2005-2007; Fase 2: 2008-2012) sofreram com excesso de licenças alocadas gratuitamente e dados de emissões incipientes, resultando em preços de carbono muito baixos e pouco estímulo à redução. A Fase 3 (2013-2020) introduziu um limite único para toda a UE e iniciou a redução linear anual desse limite, além de aumentar a proporção de licenças leiloadas, o que levou a uma recuperação gradual dos preços a partir de 2018.
A Fase 4 (2021-2030) aprofundou a ambição, com uma meta de redução de 62% até 2030 (vs. 2005) nos setores cobertos e um fator de redução linear anual mais acentuado (4,3% entre 2024-2027 e 4,4% a partir de 2028). As emissões do transporte marítimo foram incluídas no EU ETS a partir de 2024, levando a um aumento do limite de 78,4 milhões de licenças, ao passo que o limite da aviação também está sujeito ao fator de redução anual.
Os preços das EUAs refletem essa crescente ambição: após oscilarem na faixa de €80 (2021-2023), recuaram para cerca de €70 no final de 2023, com uma média de leilão de €64,74 em 2024 e €68,69 em março de. Projeções indicam tendência de alta, superando €100 até 2026 e alcançando €149 até 2030, segundo previsão da BloombergNEF.
Essa evolução demonstra a importância de um design robusto, mecanismos de estabilidade (como a Reserva de Estabilidade de Mercado (MSR) implementada na UE), e a capacidade de ajustar o sistema para garantir a integridade ambiental e o sinal de preço adequado. A abordagem de tributação também difere: enquanto o SBCE foca na tributação do ganho financeiro com os ativos, o EU ETS gera receita principalmente via leilões de licenças, cuja arrecadação é direcionada pelos Estados-Membros para ações climáticas.
Complementar ao EU ETS e com implicações diretas para parceiros comerciais como o Brasil, a União Europeia introduziu o Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira (CBAM), componente chave do pacote "Fit for 55", desenhado para combater a "fuga de carbono" – o risco de empresas transferirem produção para países com políticas climáticas menos rigorosas.
Seu principal objetivo é garantir que o preço do carbono pago pelas mercadorias importadas para a UE seja equivalente ao preço do carbono enfrentado pelos produtores da UE que operam sob o EU ETS, criando assim condições de concorrência equitativas e prevenindo a fuga de carbono.
O CBAM aplica-se inicialmente às importações de mercadorias intensivas em carbono de países não pertencentes à UE, visando especificamente mercadorias nos setores de cimento, eletricidade, fertilizantes, alumínio, ferro, aço e hidrogênio, bem como alguns produtos a montante e a jusante.
A implementação é faseada: uma fase de transição (outubro 2023 - dezembro 2025) exige apenas o relato das emissões incorporadas pelos importadores. A partir de 1º de janeiro de 2026, inicia-se a fase definitiva: importadores precisarão comprar e entregar "certificados CBAM" equivalentes às emissões incorporadas, cujo preço será atrelado ao preço médio semanal das licenças EU ETS.
O CBAM foi concebido para substituir gradualmente a atribuição gratuita de licenças EU ETS atualmente concedidas aos produtores da UE considerados em alto risco de fuga de carbono. Esta eliminação gradual ocorrerá ao longo de um período de nove anos, de 2026 a 2034, e corresponderá diretamente à introdução gradual do CBAM. Paralelamente à introdução do CBAM, a UE eliminará gradualmente as licenças gratuitas do EU ETS para os setores cobertos pelo CBAM (entre 2026 e 2034), reforçando a lógica de equalizar os custos de carbono entre produção doméstica e importada.
O CBAM é um instrumento político significativo e inovador que liga diretamente o EU ETS ao comércio internacional. Ao impor um custo de carbono às importações, não só aborda as preocupações com a fuga de carbono, mas também cria um forte incentivo para a descarbonização global. A implementação faseada proporciona uma transição estruturada tanto para os importadores da UE quanto para os exportadores de fora da UE.
Tal mecanismo representa um desafio e um catalisador para o Brasil. Empresas europeias que importem produtos cobertos originados do Brasil, enfrentarão custos adicionais caso os processos produtivos das exportadoras sejam intensivos em carbono e não haja um preço de carbono equivalente pago na origem. Isso pode afetar a competitividade desses setores. Nesse sentido, a existência de um SBCE robusto e funcional torna-se estrategicamente importante. Ele sinaliza o compromisso do Brasil com a precificação de carbono e pode, futuramente, ser um instrumento para mitigar os custos do CBAM.
Vale salientar que o regulamento do CBAM prevê que um importador na UE possa solicitar uma redução no número de certificados CBAM a entregar se comprovar que um preço de carbono já foi efetivamente pago pelas emissões incorporadas no país de origem do bem. A implementação detalhada desse creditamento ainda está sendo definida, mas a existência de um sistema como o SBCE é o primeiro passo para que o Brasil possa, eventualmente, ter seu preço de carbono doméstico reconhecido (parcial ou totalmente) no âmbito do CBAM, reduzindo o ônus financeiro sobre seus exportadores.
A experiência internacional, especialmente do EU ETS, e as novas dinâmicas comerciais introduzidas pelo CBAM, fornecem um pano de fundo crucial para avaliar as perspectivas do SBCE. O Brasil pode aprender com os sucessos e percalços europeus, mas também enfrenta desafios e oportunidades únicas.
Entre os principais desafios, destaca-se o escopo inicial do sistema, que, ao excluir a agropecuária primária – setor chave nas emissões nacionais –, pode limitar seu alcance e eficácia climática inicial, sendo sua futura expansão considerada vital.
Inspirando-se nas lições do EU ETS, será fundamental evitar uma alocação inicial excessiva de CBEs, que poderia deprimir os preços e enfraquecer o incentivo à descarbonização.
A credibilidade de todo o sistema dependerá intrinsecamente da implementação de um sistema de Monitoramento, Relato e Verificação (MRV) robusto, transparente e confiável para todos os setores cobertos.
Adicionalmente, a diferença de tratamento entre setores regulados e não regulados gera preocupações sobre fuga de carbono interna e potenciais distorções competitivas domésticas.
Garantir uma transição justa, mitigando impactos adversos sobre os setores e populações mais vulneráveis, e assegurar a integridade ambiental e a adicionalidade dos CRVEs, especialmente os que migrarem do mercado voluntário, são outros pontos críticos para a confiança e o sucesso do mercado.
Por outro lado, o SBCE abre um leque significativo de oportunidades para o Brasil. O país possui um imenso potencial para se tornar um fornecedor global de créditos de carbono de alta qualidade, dada a sua riqueza em recursos naturais e as possibilidades em projetos de REDD+, agricultura de baixo carbono e restauração florestal.
Há também uma chance única de impulsionar a inovação no desenvolvimento de metodologias de quantificação e verificação adaptadas à realidade da agricultura e silvicultura tropicais.
Um SBCE bem-sucedido poderá, futuramente, buscar conexões e vinculações (linking) com outros mercados de carbono internacionais, o que traria maior liquidez, visibilidade e acesso a financiamento climático.
Espera-se que a própria existência do sistema funcione como um catalisador para a inovação tecnológica e a adoção de práticas mais sustentáveis em toda a indústria brasileira.
Finalmente, o SBCE tem o potencial de consolidar a posição do Brasil como um líder climático global, demonstrando um compromisso efetivo com a mitigação das mudanças climáticas e alinhando desenvolvimento econômico com sustentabilidade ambiental.
O desenvolvimento do SBCE é um marco para a política climática brasileira. Sua concepção será influenciada pelas lições do EU ETS e pressionada por mecanismos como o CBAM. Ao considerar cuidadosamente essas experiências e alinhar-se a boas práticas internacionais, o Brasil tem a oportunidade de construir um mercado de carbono eficaz para atingir suas metas climáticas, fomentar o desenvolvimento sustentável e fortalecer sua posição na emergente economia global de baixo carbono.